Uma casa feita à mão – construir e habitar a transformação que deseja viver no mundo

“Construir não é, em sentido próprio, apenas meio para uma habitação.
Construir já é em si mesmo habitar.”

(Heidegger, 1951)

Era uma vez uma casinha no meio da Floresta Amazônica, às margens do Rio Negro… – um conto pitoresco de um povo distante poderia começar assim. Se nos deparássemos com os primeiros personagens desta história, paulistanos que sonhavam com um lugar como este, poderíamos julgar que a história se desenrolaria num conflito com a comunidade local, afinal, é comum associarmos figuras como essas, tipicamente urbanas, a uma postura invasiva e dominadora, como alguém de fora, que invade o espaço alheio trazendo os costumes da cidade para viver um sonho individualista. Mas a história que se passa aqui é outra, bem diferente (ainda bem!).

Ciça e Marco sonharam e colocaram no papel o desenho da casinha que sempre quiseram ter na Comunidade Tumbira, um espaço onde eles pudessem conviver com os habitantes, com amigos e também promover eventos como o Laboratório de Cores da Floresta. No final do ano passado, o sonho começou a sair do papel e ganhar vida, uma vida que nasce não só da construção da casa, mas da relação que se construiu entre o casal e a comunidade. O filósofo Heidegger (1951) diz que “os espaços recebem sua essência dos lugares e não ‘do’ espaço” – e é justamente essa essência local que se buscou manter em todo o projeto da casa, cuja produção/construção tem se debruçado sobre a essência de cada detalhe, de cada parte.

Uma casa realmente pensada e construída à mão – respeitando a área de manejo, usufruindo do saber e do fazer da comunidade, que propõe soluções para cada fase: da marcenaria da estrutura que mantém a casa no prumo até o entalhe na porta e o estrado da cama. Nesse lugar, construir e habitar ganharam novas conotações, para além do produzir para alcançar e usufruir do resultado da construção acabada.

Em sua essência, produzir é conduzir para diante de…, é pro-duzir. O construir conduz, de fato, a quadratura para uma coisa, a ponte, e conduz a coisa colocando-a diante do que já está vigorando, e que somente agora através desse lugar recebe um espaço. (Heidegger, 1951).

A produção da casinha da Amazônia conduziu todos os envolvidos para diante da relação, do processo de criação, do aprendizado e da troca genuína em que ambos os lados se afetam e são afetados. Cada detalhe do projeto é motivo de encontro para estudarem juntos e criarem soluções dentro das possibilidades da comunidade e do sonho do casal. Construir lá tornou-se um processo de transformação, que só é possível quando o habitar/conviver acontecem ao mesmo tempo que a construção. Todos, implicados na construção, envolvidos, apreciando e respeitando seus saberes promovem transformação – um olhar que nasce de dentro, do projeto, do desenho, pra fora, no construir e materializar.

Habitar, ser trazido à paz de um abrigo, diz: permanecer pacificado na liberdade de um pertencimento, resguardar cada coisa em sua essência. O traço fundamental do habitar é esse resguardo. O resguardo perpassa o habitar em toda a sua amplitude. Mostra-se tão logo nos dispomos a pensar que ser homem consiste em habitar e, isso, no sentido de um de-morar-se dos mortais sobre essa terra. (Heidegger, 1951).

Não há nada mais humano do que sonhar, projetar, criar, nomear, construir e habitar. Habitamos para ter um espaço de liberdade, de paz e de pertencimento. Habitamos para conviver, viver junto. A casinha na Amazônia é guardiã dessa humanidade, que reúne diferentes qualidades e habilidades para criar um mundo possível, com relações mais justas, mais efetivas e de valorização de cada fazer. Uma relação que se estabelece na essência do construir, que é deixar-habitar. Uma relação que muda o olhar e a forma de habitar de todos por meio do construir junto, do pensar junto, um olhar que entende que “somente em sendo capazes de habitar é que podemos construir”.

Se você deseja habitar um mundo feito à mão e deseja construí-lo na convivência com outros fazedores, pensando e criando juntos, explorando lugares de liberdade criativa e inteligência coletiva, confira a programação do Festival do Fazer 2019! Dias 7 e 8 de junho de 2019, a Unibes Cultural vai abrigar uma grande casa do fazer manual que irá para o mundo novamente com o propósito de “um mundo feito a mão”, contando com a potência de diversas parcerias. Venha vivenciar um mundo possível realmente feito à mão!

Referência bibliográfica:
HEIDEGGER, M. Construir, habitar, pensar. [Bauen, Wohnen, Denken] (1951) conferência pronunciada por ocasião da “Segunda Reunião de Darmastad”, publicada em 1954. Trad. Marcia Sá Cavalcante Schuback. Disponível em: <http://www.fau.usp.br/wp-content/uploads/2016/12/heidegger_construir_habitar_pensar.pdf> Acesso em: 23/4/19.

Escrita artesanal por Carolina Messias com Ciça Costa

ARTESANAL - MANIFESTO

As mãos como ponte dos afetos de dentro para fora
dão forma ao pensamento, à singular expressão.

O artesanal mobiliza o que há de mais humano em nós:
imaginar, criar e fazer,
dar sentido às emoções, memórias, relações,
dar formas, cores, sabores, funções,
dar movimento e beleza.

Nosso ativismo artesanal acontece no “fazendo”:
no olhar sobre e para o mundo,
na escolha de como consumimos e ocupamos o mundo,
na valorização do pequeno, do local e do autoral,
no manejo do corpo com as ferramentas e os materiais,
no aprendizado com o erro, a repetição e o tempo do fazer,
no contato com a natureza e nossas raízes artesãs.

É no “fazendo” que nos colocamos
corajosamente em atrito com o nosso fazer;
é no “fazendo” que transformamos
as coisas, a nós mesmos e o mundo para,
aos poucos,
reacender a sabedoria que está dentro de nós,
de cada um de nós,
de nossa ancestralidade e
do que queremos criar com sentido neste mundo.

Por um mundo feito à mão, um mundo feito por nós!